domingo, 10 de agosto de 2014

Uma ilusão é apenas uma verdade a prazo.


Todos os dias novas ilusões nos batem à porta. No outro dia a Janis Joplins cantava no meu carro e eu cantava também… Ilusão de cantar. Lembrei-me daquelas férias em Caminha. A Manela e o Rui, o Paulo Jorge e a Lizi e calções despidos dentro do mar e armados em touca e o Rui a gritar “eu não vos conheço! Eu não vos conheço!” envergonhado. Das noites em que tocávamos sax de beiços (difícil, mas apanha-se o jeito…) com um conjunto aflito por nos acompanhar na Tv. E o Paulo Jorge a desligar a Tv gritando “tocamos melhores que estes gajos!” E rimos, rimos até à última gota de vinho do Porto.
Fomos felizes – e não sabíamos – numa ilusão certa e de tempo marcado.
Hoje vou abrindo a porta ao que o tempo me trás e não recuso nenhuma ilusão, crente que é mais nova verdade certa.  Amanhã olharei tentando afastar a ideia de engano ou disparate, negando que fui ridículo por acreditar em ilusões.

Anda lá, ainda consigo tocar sax de beiços para acompanhar as músicas da joni michel. E um dia posso mesmo aprender a tocar a sério.

Agosto, 2014

domingo, 3 de agosto de 2014

Violino esquecido


Perto de minha casa há um velho musico que resiste. Corre a rua com o violino, vibrando as cordas que  já esqueceram todas as modinhas.
Atravesso Cedofeita e se levanto os olhos da calçada lá está ele. De fato negro, caixa de violino às costas, violino no ombro, tocando coisas que esqueceu. Dois ou três compassos e remata. Percebemos que ali houve alguma música, como nos dias em que o fato era menos coçado e os olhos menos cansados. Dias de grandes trocados, copos pagos pelos amigos – imagino eu – e músicas completas. Hoje passeia como quem aquece as cordas, em acordes dispersos, retalhos de “solidós”, cançonetas e coisas simples.
Quando era pequeno a minha avós punha-me fita-cola nas orelhas. No seu cuidado, as minhas orelhas, de tão grandes, poderiam deformar-se ao dormir e abrir em leque. Colava-as à cabeça para que assim se mantivessem pelo tempo fora. Hoje tenho orelhas que não despertam atenção nem risos. Este musico não. Ninguém lhe cuidou das orelhas durante o sono. Terá alguém cuidado do seu sono? Cresceu com duas abas redondas de cada lado da cara, e nem essa posição dedicada das orelhas ajuda na música.
Os turistas passam e não deixam nada. Olham, ouvem alguns acordes, nada de muito estruturado ou reconhecível e avançam.

E o velho violino por ali anda. Carregado no ombro, com duas orelhas por publico e tão esquecido das notas. Um dia todos nos esqueceremos de tudo, dos sons, dos nomes, dos lugares e dos queridos. Nesse dia não quero andar na rua. (Talvez no fim da tarde calma me recorde das mãos da minha avó, acariciando as orelhas até à posição correta, colando-as, embalando-me).


As mãos e a areia

A mão enterra-se, aberta, na areia. Cerro-a e levanto-a no ar. A areia escapa-se, miúda, entre dedos, deixando apenas restos. Desde pequeno que me lembro: “não podes segurar areia”. Tonto.
A força da mão aumenta a frustração. Não posso agarrar, nada. Quanto mais força, mais se escapa. Eu, maior que todos os grãos e no entanto….
Se formar a mão em concha ainda seguro alguma areia. Caída, deitada na cova, aconchegada entre os dedos unidos e moles, seguro uma mão de areia.
Ao fim destes anos todos aprendo. Não preciso mais do que a mão segura. A força me dá mais areia, fá-la perder-se. No fim, há sempre areia que se agarra à mão suada.

Talvez o importante seja o que fica, quando nada se faz para o agarrar.

sábado, 26 de julho de 2014

Ser do tamanho da vida na sombra da morte

Não conhecia o marido da Ana.
Quando cheguei de outras paragens, fora de tempo e horas, a Ana contou-me: "o Rui tem um problema no pulmão e é grave....". Não sabia quando iria acabar, e queria fazer de conta que não sabia que iria acabar. Ouvia dizer que "queria ter tempo para ir para casa fazer-lhe o lanche, comprar pão fresco..." E percebi que era o tempo o tesouro. Eu fiquei com parte do trabalho dela, reuniões até de noite, viagens que me punham em casa já depois de todos jantarem. Paciência.
A Ana esteve sempre como só a Ana pode estar. Não fugiu a nada e fazia os nosso problemas parecerem pequeninos, as nossas dores de cabeça egoísmos de vidas mal arrumadas. Mas ela tinha tempo para nós. Chegava à minha beira e perguntava-me "tu tens algum problema? Andas tão murcho!". Eu olhava para ela e sentia-me pequenino. Queria aprender. Ensina-me Ana, ensina-me que eu sou apenas este mal acabado homem que não controla nada.
A Ana ouvia e nós sabíamos que ouvia. Por vezes perguntava-lhe pelo Rui e a voz estremecia, os olhos ficavam vazios e media as palavras. Nos últimos dias falava do fim, do cansaço, das mãos vazias de soluções e esperança. Chorava por dentro, deixando ver as lágrimas crescerem nos olhos. Deixa sair Ana, era o que me apetecia dizer, arrancando o meu ombro por ela. Mas a Ana mantinha-se no leme da tempestade, com um qualquer destino traçado, e segurando tudo.
Veio a noticia. Telefonaram-me e era verdade: o Rui morreu. Senti-me com vontade de fugir para um país onde estivessem todos vivos e não tivesse que olhar Anas de negro.
Depois foi um dia longo de olhos vermelhos a segurar tudo num peito apertado. E era eu, como seria com a Ana!
Uma Ana que sorria a todos, falava com calma, acarinhava a filha, limpava lágrimas, apresentava o filho - "o meu futuro veterinário" toda ela era orgulho...- e caminhou atrás do caixão, sentou-se na primeira fila e ouviu um amigo falar de viagens e viajantes, uma irmã falar de voz apertada e soluçante do Rui... Saiu e saímos com ela.
No fim, à despedida, olhou para mim e disse: "quer dizer que já não te vou ver?!"
Não Ana. Parto para Timor em Setembro para voltar no fim dos tempos, mas não me despeço de ti. Guardo esta recordação dentro de um peito regado de lágrimas, guardo esta mulher grande, de voz funda. Guardo esta mulher que sabia o tempo das coisas, o tempo de tudo o que é importante.
Ajuda-me Ana, preciso que me ensines a sonhar em ser como tu.

Julho de 2014

Comer


Ele e a Lurdes dizem que tenho de arrumar. A minha filha está a dormir (Chiu!...) não posso arrumar nada. Esta boneca agora é minha filha. Gosto mais desta que da outra que tem a Leonor. A Leonor bate e tira as bonecas, mas a minha é mais gira, não tem riscos e consigo vestir a roupa. Ele olha para mim e diz que tenho de arrumar. Escondo-me atrás do armário dos jogos. A menina está com fome e tenho de lhe dar comida… É muito pequenina e não come sozinha. E não gosta de comer. Come bebé, come, come.
A sombra grande dele pega-me por debaixo dos braços e olha para mim.
“Já não disse que são quase horas de almoçar? Anda lá Ana, os meninos já vão à casa-de-banho e lavar as mãos, anda comigo”. Não posso fugir.
As torneiras da casa-de-banho são novas e já consigo abrir. Até é divertido deixar a água correr pelos dedos, esfregar o sabão, fazer espuma, mais espuma, mais espuma até dizerem “já chega” e me secarem as mãos.
A sala da sopa é só barulho. Choros, colheres a bater no prato, gritos, pratos a bater em pratos. Sento-me na cadeira perto da porta. Ele passa e vai dar a sopa ao Mário. Peço ajuda.
“Come um bocadinho tu que já te ajudo…”
Comer…
A sopa está cheia de coisas, acho que não consigo engolir e vomito tudo. Aqueles bocados de cenoura vão prender-se à garganta por dentro. Não gosto de cenoura. Depois tem aquelas coisas verdes. Não gosto de coisas verdes. E as coisas brancas… Não gosto das coisas brancas.
A dona Rosalina tenta dar-me a sopa. Não. Não como. Ele dá. Ela afasta-se e fala com ele. Baixo os olhos e sinto outra vez a sombra dele.
“Vamos comer Ana”
Baixa-se e pega na minha colher. O barulho fica por detrás da voz que me diz:
“Vamos comer a sopa Ana”
A colher leva sopa para a minha boca. Muita sopa, muitas coisas: engulo. Outra e engulo. Outra, outra e outra: engulo tudo. Sinto quente da boca à barriga. Olho para a colher e vejo cenoura. A garganta aperta e não consigo aguentar a sopa na boca…
“Oh Ana! Já te disse que a sopa é para mastigar” e, passando a mão pela minha cabeça, diz:
“Só mais duas”
Dá-me uma, outra e mais outra. Não quero mais. Olho para ele e tento dizer que não quero mais. Ele leva o prato, levantando-o alto e levando-o para longe.
O Carlos tenta comer sozinho e suja-se todo. Ele gosta de empurrar aquela colher grande para a boca pequena. Suja a bata toda e olha para mim e ri-se. Estás todo sujo e ris?... Estes pequeninos… Ele trás o prato com ovo e arroz. Digo-lhe que o Carlos está todo sujo. Ele ri-se limpa-o. O Carlos fecha os olhos quando o guardanapo lhe tira a sopa do queixo e da cara. Olha para Ele e diz: “Come sozinho! O Ca’los come sozinho!” Ele passa-lhe a mão na cabeça e diz-lhe qualquer coisa. À minha frente a Laura está com sono e pede ajuda:
“Ajuda! Ajuda”
“Oh! Laura! Ainda não comeste nada! Vamos lá comer a sopa” E ajuda-a. Eu como um bocadinho de ovo. Mastigo-o com os dentes da frente para provar: está bem... E como mais um bocadinho. Ele vai saltando para os meninos com a sopa toda. Pega na colher e ajuda.
“Agora vou almoçar eu!” Ele vai almoçar.
Quando ele sair levanto-me e vou brincar com a água: a dona Rosalina e a Marta grande não me vêem sair.

Saio e deixo o barulho para trás, pratos com pratos, colheres nos pratos para trás, gritos, cadeiras… A boneca espera por mim e não come sozinha.
(Outubro, 2010)

Só quero olhar para ti


A Inês já não chora. A Inês já não pergunta quinhentas mil vezes se a mãe a vem buscar cedo, esperando ouvir quinhentas mil e uma vezes as minhas palavras: “A mãe vem cedo Inês… Ontem a mãe veio cedo, não veio? Veio depois de almoço, não veio? Hoje também vem cedo!”. A Inês entra pelo seu pé – sempre muito bem vestida – com a mãe atrás radiando felicidade ou simplesmente reflectindo a felicidade da Inês. (Há pais que são espelhos muito bem polidos!...).
Espera que lhe dispam o casaco, enrolem o cachecol.
“Assim não, põe aqui!”- aponta para a manga do casaco onde quer guardar o cachecol roxo.
“Olha!...” mostra-me como é fofo, passando na minha cara ainda que a minha barba briguenta não esteja de acordo. Um homem tem destas coisas: alguns pelos na cara e vão-se as coisas fofas.
Quando observo que a Inês está muito melhor, o sorriso na cara da mãe não deixa espaço para mais nada: “É! Em casa só fala da escola… Quando está doente está sempre a perguntar quando vem… No fim de semana é assim!...”
Na sala quer ficar do meu lado, encostada e aproveitando as deixas dos colegas para falar comigo.
“ Paulo, olha! Tenho sapatilhas novas!” Diz o Diogo, levantado as calças e deixando aos olhos de todos umas pequenas sapatilhas brancas e azuis. “Adidas! Diz aqui, Adidas! Uau!...” observo.
A Inês puxa-me o braço com força. Olho para baixo.
“A minha mãe também me comprou umas sapatilhas…”
“ Mas trouxeste botas. As botas de pêlo! …” – Respondo.
“…”
Deixo-a a pensar. Mais tarde vai-me dizer que a mãe disse que as sapatilhas são para a “ginástica”, só para a “ginástica”.
Sentados na mesa mostro os desenhos que os meninos da sala da Ana fizeram: “Os meninos desenharam as suas caras… Olha este foi o António que fez… E este foi a…”. Querem pegar para ver. Já sei que ver com os olhos – só – é coisa de quem não vê bem. Ver é com tudo para ver tudo. Estendo folhas de papel e peço desenhos dos meninos: “É para a minha colecção… Tenho muitos desenhos de meninos em minha casa! Um dia trago e mostro-vos!”
As folhas não resistem brancas durante muito tempo. Riscos anárquicos numa, organizados lentamente noutra e aparecem mandalas, cabeças, pernas, braços… Vou vendo e sorrindo: a minha colecção sorri.
“Olha que giro este menino que giro que ficou!... Este ainda está mais bonito que o outro que pusemos no quadro!” – Digo.
A Inês, debruçada sobre a mesa observa. Olha tudo o que acontece com dedicação e empatia: ri com os elogios, preocupa-se quando os lápis caem, chama-me a atenção quando a Erica diz “Não sei, não consigo…”. Os braços cruzados da Inês dão uma pista sobre a sua disponibilidade: não quer desenhar… “Só quero olhar para ti”, diz-me.
Olhar para mim é ver o que peço, o material que estendo, as pausas que faço para ouvir respostas e ideias, o meu riso com qualquer disparate. Olhar perto, olhar com um encosto: não é olhar de longe, do outro lado da mesa. A Lurdes passa e observa que a pequena não está a fazer nada. Engano. A Inês trabalha intensamente observando tudo o que acontece. Os seus sentidos passam por todas as realidades individuais, sentindo o que sentem, guardando o que fazem, analisando o que digo e respondo por cima dos desenhos.
(um dia vou usar este exemplo para explicar a relação entre "auto-conceito" e "raciocinio atribucional" no processo motivacional. Explicar que temos de acreditar na nossa capacidade de controlar uma situação para mais facilmente nos envolvermos nela. Motivos...)
A Inês, tão preocupada com a sua imagem de casaco bem apertado e cachecol roxo-fofo não quer arriscar a ideia que faz de si numa tarefa que é um filme que ainda não viu.
Mais tarde – uns dias depois –, calmamente, irá pegar no caderno novo que todos tem e os lápis irão revelar os meninos, pais, mães, cães e casas que os seus olhos viram e guardaram, a segurança devolve-os ali, naquele papel.

As mãos da Inês ofereceram-me o que os seus sentidos encheram de sentido e cor. Antes só queria olhar para mim.
(Setembro, 2010)

Era esperado.

O telefone toca no bolso. Colho-o com cuidado e levo-o ao ouvido. A voz não é surpresa quando o nome me salta no ecrã. Lembro-me ter esperar que o telefone tocasse. Poucas vezes nas infindáveis chamadas para pequenos disparates e inutilidades.Aquela hora, antes, daqui a pouco, depois, logo à tarde, depois à noite, antes de chegar a casa, à saída do comboio, quando o ferro chiava pela carruagem...Era ela naquele telefone como se ocupasse um alpendre, de jornal nos dedos, ouvindo o tempo passar. "Que fazes?" era a pergunta tão ouvida que arranhava. Estava ali, onde quer que isso fosse, e era assim. "Estou...". A frase dissolve-se lentamente antes de novas perguntas. "Que vozinha?!", "estás triste?". Pelo meio, palavras esquecidas como "amorzinho". Eram retalhos, etiquetas antigas coladas a frases do dia. E repetiam-se. Reviro os olhos e a conversa parece um pequeno velório de silêncios. E sinto que devia estar ali em silêncio, de olhos baixo, esperando que o corpo passasse, mão cruzada na frente do corpo, imóvel.
E não consigo. Há esperas que trazem discussões, palavras duras, olhares secos, vontade de sair. Deixo-me estar entre "pois". Ouço um "fazes bem" e "acho que sim". Uma gargalhada seca e nervosa e novo "acho bem". Um "ciao" soando a "xau" fecham a conversa. Ainda há tempo para um "xau amor". Mas já não estou nesse lugar, já não reconheço esse tempo desfigurado. Sinto que passo por ali, fora do caixão.
(Março , 2014)