sábado, 26 de julho de 2014

Ser do tamanho da vida na sombra da morte

Não conhecia o marido da Ana.
Quando cheguei de outras paragens, fora de tempo e horas, a Ana contou-me: "o Rui tem um problema no pulmão e é grave....". Não sabia quando iria acabar, e queria fazer de conta que não sabia que iria acabar. Ouvia dizer que "queria ter tempo para ir para casa fazer-lhe o lanche, comprar pão fresco..." E percebi que era o tempo o tesouro. Eu fiquei com parte do trabalho dela, reuniões até de noite, viagens que me punham em casa já depois de todos jantarem. Paciência.
A Ana esteve sempre como só a Ana pode estar. Não fugiu a nada e fazia os nosso problemas parecerem pequeninos, as nossas dores de cabeça egoísmos de vidas mal arrumadas. Mas ela tinha tempo para nós. Chegava à minha beira e perguntava-me "tu tens algum problema? Andas tão murcho!". Eu olhava para ela e sentia-me pequenino. Queria aprender. Ensina-me Ana, ensina-me que eu sou apenas este mal acabado homem que não controla nada.
A Ana ouvia e nós sabíamos que ouvia. Por vezes perguntava-lhe pelo Rui e a voz estremecia, os olhos ficavam vazios e media as palavras. Nos últimos dias falava do fim, do cansaço, das mãos vazias de soluções e esperança. Chorava por dentro, deixando ver as lágrimas crescerem nos olhos. Deixa sair Ana, era o que me apetecia dizer, arrancando o meu ombro por ela. Mas a Ana mantinha-se no leme da tempestade, com um qualquer destino traçado, e segurando tudo.
Veio a noticia. Telefonaram-me e era verdade: o Rui morreu. Senti-me com vontade de fugir para um país onde estivessem todos vivos e não tivesse que olhar Anas de negro.
Depois foi um dia longo de olhos vermelhos a segurar tudo num peito apertado. E era eu, como seria com a Ana!
Uma Ana que sorria a todos, falava com calma, acarinhava a filha, limpava lágrimas, apresentava o filho - "o meu futuro veterinário" toda ela era orgulho...- e caminhou atrás do caixão, sentou-se na primeira fila e ouviu um amigo falar de viagens e viajantes, uma irmã falar de voz apertada e soluçante do Rui... Saiu e saímos com ela.
No fim, à despedida, olhou para mim e disse: "quer dizer que já não te vou ver?!"
Não Ana. Parto para Timor em Setembro para voltar no fim dos tempos, mas não me despeço de ti. Guardo esta recordação dentro de um peito regado de lágrimas, guardo esta mulher grande, de voz funda. Guardo esta mulher que sabia o tempo das coisas, o tempo de tudo o que é importante.
Ajuda-me Ana, preciso que me ensines a sonhar em ser como tu.

Julho de 2014

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