sábado, 26 de julho de 2014

Só quero olhar para ti


A Inês já não chora. A Inês já não pergunta quinhentas mil vezes se a mãe a vem buscar cedo, esperando ouvir quinhentas mil e uma vezes as minhas palavras: “A mãe vem cedo Inês… Ontem a mãe veio cedo, não veio? Veio depois de almoço, não veio? Hoje também vem cedo!”. A Inês entra pelo seu pé – sempre muito bem vestida – com a mãe atrás radiando felicidade ou simplesmente reflectindo a felicidade da Inês. (Há pais que são espelhos muito bem polidos!...).
Espera que lhe dispam o casaco, enrolem o cachecol.
“Assim não, põe aqui!”- aponta para a manga do casaco onde quer guardar o cachecol roxo.
“Olha!...” mostra-me como é fofo, passando na minha cara ainda que a minha barba briguenta não esteja de acordo. Um homem tem destas coisas: alguns pelos na cara e vão-se as coisas fofas.
Quando observo que a Inês está muito melhor, o sorriso na cara da mãe não deixa espaço para mais nada: “É! Em casa só fala da escola… Quando está doente está sempre a perguntar quando vem… No fim de semana é assim!...”
Na sala quer ficar do meu lado, encostada e aproveitando as deixas dos colegas para falar comigo.
“ Paulo, olha! Tenho sapatilhas novas!” Diz o Diogo, levantado as calças e deixando aos olhos de todos umas pequenas sapatilhas brancas e azuis. “Adidas! Diz aqui, Adidas! Uau!...” observo.
A Inês puxa-me o braço com força. Olho para baixo.
“A minha mãe também me comprou umas sapatilhas…”
“ Mas trouxeste botas. As botas de pêlo! …” – Respondo.
“…”
Deixo-a a pensar. Mais tarde vai-me dizer que a mãe disse que as sapatilhas são para a “ginástica”, só para a “ginástica”.
Sentados na mesa mostro os desenhos que os meninos da sala da Ana fizeram: “Os meninos desenharam as suas caras… Olha este foi o António que fez… E este foi a…”. Querem pegar para ver. Já sei que ver com os olhos – só – é coisa de quem não vê bem. Ver é com tudo para ver tudo. Estendo folhas de papel e peço desenhos dos meninos: “É para a minha colecção… Tenho muitos desenhos de meninos em minha casa! Um dia trago e mostro-vos!”
As folhas não resistem brancas durante muito tempo. Riscos anárquicos numa, organizados lentamente noutra e aparecem mandalas, cabeças, pernas, braços… Vou vendo e sorrindo: a minha colecção sorri.
“Olha que giro este menino que giro que ficou!... Este ainda está mais bonito que o outro que pusemos no quadro!” – Digo.
A Inês, debruçada sobre a mesa observa. Olha tudo o que acontece com dedicação e empatia: ri com os elogios, preocupa-se quando os lápis caem, chama-me a atenção quando a Erica diz “Não sei, não consigo…”. Os braços cruzados da Inês dão uma pista sobre a sua disponibilidade: não quer desenhar… “Só quero olhar para ti”, diz-me.
Olhar para mim é ver o que peço, o material que estendo, as pausas que faço para ouvir respostas e ideias, o meu riso com qualquer disparate. Olhar perto, olhar com um encosto: não é olhar de longe, do outro lado da mesa. A Lurdes passa e observa que a pequena não está a fazer nada. Engano. A Inês trabalha intensamente observando tudo o que acontece. Os seus sentidos passam por todas as realidades individuais, sentindo o que sentem, guardando o que fazem, analisando o que digo e respondo por cima dos desenhos.
(um dia vou usar este exemplo para explicar a relação entre "auto-conceito" e "raciocinio atribucional" no processo motivacional. Explicar que temos de acreditar na nossa capacidade de controlar uma situação para mais facilmente nos envolvermos nela. Motivos...)
A Inês, tão preocupada com a sua imagem de casaco bem apertado e cachecol roxo-fofo não quer arriscar a ideia que faz de si numa tarefa que é um filme que ainda não viu.
Mais tarde – uns dias depois –, calmamente, irá pegar no caderno novo que todos tem e os lápis irão revelar os meninos, pais, mães, cães e casas que os seus olhos viram e guardaram, a segurança devolve-os ali, naquele papel.

As mãos da Inês ofereceram-me o que os seus sentidos encheram de sentido e cor. Antes só queria olhar para mim.
(Setembro, 2010)

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