Comer
Ele e a Lurdes dizem que tenho de arrumar. A minha filha
está a dormir (Chiu!...) não posso arrumar nada. Esta boneca agora é minha
filha. Gosto mais desta que da outra que tem a Leonor. A Leonor bate e tira as
bonecas, mas a minha é mais gira, não tem riscos e consigo vestir a roupa. Ele olha para mim e diz que tenho de arrumar. Escondo-me atrás do armário dos
jogos. A menina está com fome e tenho de lhe dar comida… É muito pequenina e
não come sozinha. E não gosta de comer. Come bebé, come, come.
A sombra grande dele pega-me por debaixo dos braços e
olha para mim.
“Já não disse que são quase horas de almoçar? Anda lá Ana,
os meninos já vão à casa-de-banho e lavar as mãos, anda comigo”. Não posso
fugir.
As torneiras da casa-de-banho são novas e já consigo abrir.
Até é divertido deixar a água correr pelos dedos, esfregar o sabão, fazer
espuma, mais espuma, mais espuma até dizerem “já chega” e me secarem as mãos.
A sala da sopa é só barulho. Choros, colheres a bater no
prato, gritos, pratos a bater em pratos. Sento-me na cadeira perto da porta. Ele passa e vai dar a sopa ao Mário. Peço ajuda.
“Come um bocadinho tu que já te ajudo…”
Comer…
A sopa está cheia de coisas, acho que não consigo engolir e
vomito tudo. Aqueles bocados de cenoura vão prender-se à garganta por dentro.
Não gosto de cenoura. Depois tem aquelas coisas verdes. Não gosto de coisas
verdes. E as coisas brancas… Não gosto das coisas brancas.
A dona Rosalina tenta dar-me a sopa. Não. Não como. Ele dá. Ela afasta-se e fala com ele. Baixo os olhos e sinto outra vez a sombra
dele.
“Vamos comer Ana”
Baixa-se e pega na minha colher. O barulho fica por detrás
da voz que me diz:
“Vamos comer a sopa Ana”
A colher leva sopa para a minha boca. Muita sopa, muitas
coisas: engulo. Outra e engulo. Outra, outra e outra: engulo tudo. Sinto quente
da boca à barriga. Olho para a colher e vejo cenoura. A garganta aperta e não
consigo aguentar a sopa na boca…
“Oh Ana! Já te disse que a sopa é para mastigar” e, passando
a mão pela minha cabeça, diz:
“Só mais duas”
Dá-me uma, outra e mais outra. Não quero mais. Olho para ele
e tento dizer que não quero mais. Ele leva o prato, levantando-o alto e
levando-o para longe.
O Carlos tenta comer sozinho e suja-se todo. Ele gosta de
empurrar aquela colher grande para a boca pequena. Suja a bata toda e olha para
mim e ri-se. Estás todo sujo e ris?... Estes pequeninos… Ele trás o prato
com ovo e arroz. Digo-lhe que o Carlos está todo sujo. Ele ri-se limpa-o. O
Carlos fecha os olhos quando o guardanapo lhe tira a sopa do queixo e da cara.
Olha para Ele e diz: “Come sozinho! O Ca’los come sozinho!” Ele passa-lhe a mão na cabeça e diz-lhe qualquer coisa. À minha frente a Laura está
com sono e pede ajuda:
“Ajuda! Ajuda”
“Oh! Laura! Ainda não comeste nada! Vamos lá comer a sopa” E
ajuda-a. Eu como um bocadinho de ovo. Mastigo-o com os dentes da frente para
provar: está bem... E como mais um bocadinho. Ele vai saltando para os meninos
com a sopa toda. Pega na colher e ajuda.
“Agora vou almoçar eu!” Ele vai almoçar.
Quando ele sair levanto-me e vou brincar com a água: a dona
Rosalina e a Marta grande não me vêem sair.
Saio e deixo o barulho para trás, pratos com pratos, colheres nos pratos para trás, gritos,
cadeiras… A boneca espera por mim e não come sozinha.
(Outubro, 2010)
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