sábado, 26 de julho de 2014

Era esperado.

O telefone toca no bolso. Colho-o com cuidado e levo-o ao ouvido. A voz não é surpresa quando o nome me salta no ecrã. Lembro-me ter esperar que o telefone tocasse. Poucas vezes nas infindáveis chamadas para pequenos disparates e inutilidades.Aquela hora, antes, daqui a pouco, depois, logo à tarde, depois à noite, antes de chegar a casa, à saída do comboio, quando o ferro chiava pela carruagem...Era ela naquele telefone como se ocupasse um alpendre, de jornal nos dedos, ouvindo o tempo passar. "Que fazes?" era a pergunta tão ouvida que arranhava. Estava ali, onde quer que isso fosse, e era assim. "Estou...". A frase dissolve-se lentamente antes de novas perguntas. "Que vozinha?!", "estás triste?". Pelo meio, palavras esquecidas como "amorzinho". Eram retalhos, etiquetas antigas coladas a frases do dia. E repetiam-se. Reviro os olhos e a conversa parece um pequeno velório de silêncios. E sinto que devia estar ali em silêncio, de olhos baixo, esperando que o corpo passasse, mão cruzada na frente do corpo, imóvel.
E não consigo. Há esperas que trazem discussões, palavras duras, olhares secos, vontade de sair. Deixo-me estar entre "pois". Ouço um "fazes bem" e "acho que sim". Uma gargalhada seca e nervosa e novo "acho bem". Um "ciao" soando a "xau" fecham a conversa. Ainda há tempo para um "xau amor". Mas já não estou nesse lugar, já não reconheço esse tempo desfigurado. Sinto que passo por ali, fora do caixão.
(Março , 2014)

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