domingo, 3 de agosto de 2014

Violino esquecido


Perto de minha casa há um velho musico que resiste. Corre a rua com o violino, vibrando as cordas que  já esqueceram todas as modinhas.
Atravesso Cedofeita e se levanto os olhos da calçada lá está ele. De fato negro, caixa de violino às costas, violino no ombro, tocando coisas que esqueceu. Dois ou três compassos e remata. Percebemos que ali houve alguma música, como nos dias em que o fato era menos coçado e os olhos menos cansados. Dias de grandes trocados, copos pagos pelos amigos – imagino eu – e músicas completas. Hoje passeia como quem aquece as cordas, em acordes dispersos, retalhos de “solidós”, cançonetas e coisas simples.
Quando era pequeno a minha avós punha-me fita-cola nas orelhas. No seu cuidado, as minhas orelhas, de tão grandes, poderiam deformar-se ao dormir e abrir em leque. Colava-as à cabeça para que assim se mantivessem pelo tempo fora. Hoje tenho orelhas que não despertam atenção nem risos. Este musico não. Ninguém lhe cuidou das orelhas durante o sono. Terá alguém cuidado do seu sono? Cresceu com duas abas redondas de cada lado da cara, e nem essa posição dedicada das orelhas ajuda na música.
Os turistas passam e não deixam nada. Olham, ouvem alguns acordes, nada de muito estruturado ou reconhecível e avançam.

E o velho violino por ali anda. Carregado no ombro, com duas orelhas por publico e tão esquecido das notas. Um dia todos nos esqueceremos de tudo, dos sons, dos nomes, dos lugares e dos queridos. Nesse dia não quero andar na rua. (Talvez no fim da tarde calma me recorde das mãos da minha avó, acariciando as orelhas até à posição correta, colando-as, embalando-me).

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